quinta-feira, 27 de outubro de 2016

"os homens não são governados por anjos, por isso cabe controlá-los... É exatamente isso, os juízes não são anjos. Se não tem teto, se não tem limites e ninguém controla ninguém, cada um faz o seu direito ad hoc [para uma finalidade], o direito excepcional, reinterpreta, reescreve"

Juízes não são anjos

Por Ribamar Fonseca - Brasil 247 - 27/10/2018

A crise está instalada. E o confronto entre poderes parece inevitável. A recusa da presidenta do Supremo Tribunal Federal, ministra Carmen Lúcia, em aceitar o convite do presidente Michel Temer para uma reunião com o presidente do Senado, Renan Calheiros, numa tentativa para por fim à crise entre o Legislativo e o Judiciário, sinaliza para atitudes mais drásticas no próximo dia 3 de novembro, quando a Suprema Corte se reunirá para julgar uma ação que pede o afastamento do senador alagoano da presidência do Congresso. A julgar pelos ânimos exaltados no âmbito do Judiciário, pelo fato de Renan ter chamado de "juizeco" o juiz Vallisney de Souza Oliveira, autor da ordem para invasão da Policia Federal no Senado, tudo indica que a Corte aprovará o afastamento do senador, que é investigado no âmbito da Lava-Jato. Embora até hoje nenhuma acusação contra ele tenha sido provada, só o fato de ser investigado deverá ser motivo suficiente para afastá-lo, abrindo caminho para a sua prisão. E aí tudo pode acontecer, inclusive a desobediência do Congresso à decisão do Supremo, cujas consequências são imprevisíveis.

Aparentemente, dificilmente o senador Renan Calheiros, cuja posição em defesa do Senado recebeu o apoio dos seus colegas de Parlamento e também de integrantes do Executivo, aceitará a decisão do STF, pois isso significará a capitulação do Congresso e reconhecimento do superpoder do Judiciário, já que, segundo a Constituição, os dois poderes estão no mesmo nível. Executivo e Legislativo provavelmente se unirão contra a Suprema Corte, até pela necessidade de se protegerem, pois muitos integrantes dos dois poderes estão sendo investigados pela Lava-Jato, acusados de corrupção, o que não significa necessariamente que sejam culpados, pelo menos até que surjam as provas. E se aceitarem o afastamento de Renan todos vão cair, principalmente após a delação da Odebrecht, porque com essa desculpa de combater a corrupção muitos magistrados, acusados de cometer excessos, acreditam que hoje podem tudo e, animados pelo sucesso do juiz Sergio Moro, vão querer prender todo mundo. Afinal, segundo o ministro Gilmar Mendes, nunca tivemos tantos "combatentes da corrupção" no país.

Diante da gravidade da crise institucional, que pode descambar para uma verdadeira guerra entre poderes, situação que pode ensejar uma intervenção dos militares, o Supremo precisa ser cauteloso em seu julgamento, evitando decidir com emoção. Na verdade, ao invés de alimentar o corporativismo para defender um magistrado que, efetivamente, extrapolou em sua competência – conforme, aliás, reconheceu inclusive um integrante da própria Corte, o ministro Gilmar Mendes – os ministros devem avaliar, com vistas aos interesses maiores da Nação, as consequências de uma decisão emotiva para a vida do país. Até porque se eles tem armas para conter a justa indignação de Renan, que apenas extrapolou na classificação do juiz, Renan também tem armas para conter os excessos do Judiciário, excessos, aliás, já reconhecidos e condenados até por magistrados. Portanto, antes de pensar em brios feridos é fundamental pensar no país, que não pode ficar à mercê de paixões políticas.

Na verdade, é preciso punir agentes públicos que desrespeitam a hierarquia e agem como se tivessem o poder absoluto. É o caso, por exemplo, do procurador Carlos Fernando de Lima, da força-tarefa da Operação Lava-Jato, que veio a público para defender o juiz Vallisney, afirmando que "um juiz de primeira instância pode autorizar a entrada em qualquer lugar porque não existem lugares imunes às buscas e apreensões no Brasil. Não existe nenhum santuário". Como procurador ele devia saber que existe, sim, lugares onde um juiz não pode mandar invadir como, por exemplo, a sede de outro poder, que pode ser o Congresso ou o Palácio do Planalto. Ele disse, também, que "não cabe a ninguém ficar puxando a orelha de juiz". Cabe sim, talvez não ao presidente do Congresso, mas ao Conselho Nacional de Justiça ou aos ministros do Supremo Tribunal Federal. Infelizmente o CNJ, depois da aposentadoria da ministra Eliana Calmon, deixou de cumprir a sua tarefa na punição dos erros e contenção dos excessos de magistrados, embora a sua atual presidenta, a ministra Carmen Lúcia, tenha dito que "esse Conselho, como todos os órgãos do Poder Judicário, está cumprindo a sua função da melhor maneira e sabendo que nossos atos são questionáveis".

A propósito, em recente artigo publicado na revista "Carta Capital", o governador Flavio Dino, do Maranhão, que é juiz federal – ele foi aprovado em primeiro lugar no concurso a que se submeteu – lembrou que "o poder é abusivo por natureza e vai até onde encontra limites; os homens não são governados por anjos, por isso cabe controlá-los... É exatamente isso, os juízes não são anjos. Se não tem teto, se não tem limites e ninguém controla ninguém, cada um faz o seu direito ad hoc [para uma finalidade], o direito excepcional, reinterpreta, reescreve". Mais adiante, depois de criticar o excesso de prisões preventivas, "que estão sendo banalizadas", disse que "é como se entrássemos numa era em que o vale-tudo é legítimo, que os fins justificam os meios, negando a própria razão de ser do direito que é exatamente evitar que os fins justifiquem os meios porque, caso contrário, é a lei da selva. Temos justamente normas processuais para que não valha a lei da selva, para que não haja o arbítrio". E concluiu: "É isso que estamos assistindo. O enfraquecimento de garantias e uma exacerbação de subjetividade que é uma tendência bastante perigosa".

O ministro Gilmar Mendes, por sua vez, também criticou o excesso de prisões preventivas determinadas pelo juiz Sergio Moro, dizendo que é preciso estabelecer limites. "Acho que deveríamos ter colocado limites nessas prisões preventivas que não terminam", ele disse. Na oportunidade, o ministro criticou também o corporativismo, afirmando que "o Brasil virou uma república corporativa. A gente só vê os grupos altos, centrados, defendendo seus próprios interesses. E agora nunca tivemos tantos combatentes de corrupção. Talvez tenhamos 18 mil Moros". Ao invés de fortalecer o corporativismo, portanto, o Supremo precisa reconhecer os erros e excessos de juízes e promotores, adotando providências para contê-los e puni-los, pois com essa desculpa de combater a corrupção todos se acham no direito de extrapolar em suas atribuições, convencidos, talvez, do apoio da sociedade e da mídia. Afinal, conforme disse o governador do Maranhão, Flavio Dino, "juízes não são anjos"...

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