Monarquia sem rei
Por Mino Carta - CartaCapital - 31/10/2016Só assim se explica a agressão cometida contra o Brasil e os brasileiros. É como se a casa-grande decretasse: “O Estado sou eu”
O franciscano dom Paulo Evaristo é um exemplo de sabedoria e destemor. Na segunda 24 foi homenageado por seus 95 anos no Teatro da Universidade Católica de São Paulo, com participação de figuras ilustres e um público pronto ao grito de “fora Temer”. Nos tempos da ditadura, debaixo da batina, dom Paulo vestia uma armadura. Hoje faz muita falta.
O desafio à ditadura do então cardeal arcebispo paulista é uma página histórica que convém ler e reler. Hoje vivemos uma situação ainda pior e a respeito tenho conversado constantemente com os meus botões, para concluir que o Estado de exceção em que mergulhamos é algo assim como uma monarquia por direito divino, embora sem rei.
Em lugar do soberano, uma entidade superior por obra de uma teologia específica, dissociada de qualquer referência contemporânea, a não ser na aplicação fervorosa do neoliberalismo, a ser entendido, na minha visão, como neoliberismo. Permito-me sustentar que o neoliberalismo é também monárquico no sentido medieval.
Dom João VI, o rei de Portugal que jamais tomou banho, ao aportar no Brasil nos começos do século XIX, antecipou esse desfecho ao longo de um enredo desenrolado por mais de 200 anos. Fugia do exército napoleônico, que chegava para difundir as ideias da Revolução Francesa e, segundo os meus botões, não somente deu a saída do entrecho, mas também cuidou de estabelecer, quem sabe sem se dar conta, o seu propósito central. Ou seja, manter respeitoso e definitivo distanciamento de ideais renovadores.
Chamo esta entidade monárquica de casa-grande, a qual permanece rigorosamente impermeável a veleidades progressistas. E acaba de dizer, em tom de edito: “O Estado sou eu”. Houve a notável tentativa do governo Lula, e agora soçobra. O golpe de 1964 entrega o Brasil à ditadura.
O golpe de 2016 entrega-o a uma espécie de monarquia. Não há outra forma de perceber a prepotência, a arrogância, a desfaçatez de um poder que tudo se permite, impunemente, diante de um povo resignado, conforme manda a regra da senzala.
O que mais há de inquietar dom Paulo nesta moldura em que a tragédia sobrepuja a farsa? A agressão das reformas do governo a serviço da casa-grande contra o próprio ser humano, no individual e no coletivo.
Contra o trabalhador, contra os estudantes e seus mestres, contra os desvalidos em geral. É tudo o que contraria e ofende a doutrina cristã da igualdade, na contramão do pensamento do papa, um jesuíta chamado Francisco. Mas seria Cristo um comunista?
Nunca esquecerei uma longa e edificante conversa que tive com dom Paulo, quando já deixara o comando da Arquidiocese. Contou-me, a certa altura, de uma visita feita a João Paulo II no Vaticano, e produziu então uma perfeita imitação do papa Wojtyla, trêmulo na voz e no gesto. Foi fácil entender que não apreciava o pontífice obcecado pela fúria anticomunista e capaz de permitir que a chamada Santa Sé se tornasse digna dos tempos da devassidão renascimental.
Aposto que grande apreciador do papa polaco é o atual presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Martins Filho, que ali chegou graças à determinante ajuda do ministro Gilmar Mendes, o mesmo que agora desmente quanto já afirmou, imperiosamente, como é do seu temperamento.
Martins Filho vive apartado em Brasília, de perfil baixo, longe da presidência do TST, quando se recolhe piedosamente a um centro de retiro habitado por seguidores da Opus Dei, a organização mais reacionária do catolicismo. No caso, a meditação não favorece a piedade cristã.
De fato, ele costuma expor conceitos diametralmente opostos àqueles do papa Bergoglio contra a sanha neoliberal, para se tornar o Torquemada dos trabalhadores brasileiros, empenhado em inaugurar uma versão atualizada dos autos da fé.
Dom Paulo e Martins Filho, formas opostas de interpretar a doutrina cristã. Certo é, porém, que o crucificado está com o seu cardeal, para sempre. Não há como duvidar que seja esta a verdade factual.
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