Sou um revisor de letras mortas
Por Walfrido Vianna - GGN - 22/10/2016
Eu sou um revisor de letras mortas. Tenho sido e durante muito tempo ainda serei (talvez) um revisor de letras mortas. Quem dedica mais da metade útil do seu dia a zelar por artigos agora antigos, dispositivos sem mais valia, caputs ápodes em falecidas normas, é um revisor de letras mortas.
Um dia, estando a pesquisar a origem do meu nome, descobri: "Walfrido, do teutônico, o que dá a paz, o que vela os mortos, o que guarda os túmulos". E isso, até há pouco, fez para mim sentido nenhum. Mas neste momento bem compreendo, evidente e óbvio como um girassol ao sol, que agora sou como Anúbis, o deus egípcio guardião das tumbas -- que agora eu sou um revisor de letras mortas. Ah, com que zelo, com que cuidado, nos últimos anos pus-me a lavar, assear, higienizar, varrer, ensaboar, despoluir, espanar, escovar, esfregar, desempoar, desencardir, desenxovalhar, desenodoar, abluir, desinfetar, esterilizar, assepsiar, sanear, aclarar, desanuviar, desenevoar enunciados.
Separava o joio do artigo, o cisco do inciso, a úsnea da alínea. Desenfarruscava parágrafos. E purificava dispositivos outros, como que a redimi-los de algum pecado ou de algo que lhes fosse nocivo à sua carne de legitimidade.
Mas agora eu sou um revisor de letras mortas. Como o anatomista que rearranja os tecidos num corpo sem vida, ou como sabe as vísceras num morto o legista. A alguns, confesso, eu os nutria com maior diligência. Pareciam-me mais caros que outros, muito embora sempre os tenha julgado como um pai que igualmente a seus filhos julga -- ainda que em verdade deles nenhum tenha nascido de mim. Mas eram como se fossem. Ah, que lindeza este: "LVII - Ninguém será considerado culpado sem o trânsito em julgado da sentença penal condenatória"! E este então, que mimo: "X - São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente da sua violação"! E que belezura também: "LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal"!
Mas o país que eu conhecia parece estar se desvanecendo. A Justiça fechou o expediente e está a meio-pau. E o que antes era Direito, na democrática normalidade, agora é fé, convicção, seita. Ou a mais obscena moralidade. Eu sou um guardião de letras mortas.
Um dia, estando a pesquisar a origem do meu nome, descobri: "Walfrido, do teutônico, o que dá a paz, o que vela os mortos, o que guarda os túmulos". E isso, até há pouco, fez para mim sentido nenhum. Mas neste momento bem compreendo, evidente e óbvio como um girassol ao sol, que agora sou como Anúbis, o deus egípcio guardião das tumbas -- que agora eu sou um revisor de letras mortas. Ah, com que zelo, com que cuidado, nos últimos anos pus-me a lavar, assear, higienizar, varrer, ensaboar, despoluir, espanar, escovar, esfregar, desempoar, desencardir, desenxovalhar, desenodoar, abluir, desinfetar, esterilizar, assepsiar, sanear, aclarar, desanuviar, desenevoar enunciados.
Separava o joio do artigo, o cisco do inciso, a úsnea da alínea. Desenfarruscava parágrafos. E purificava dispositivos outros, como que a redimi-los de algum pecado ou de algo que lhes fosse nocivo à sua carne de legitimidade.
Mas agora eu sou um revisor de letras mortas. Como o anatomista que rearranja os tecidos num corpo sem vida, ou como sabe as vísceras num morto o legista. A alguns, confesso, eu os nutria com maior diligência. Pareciam-me mais caros que outros, muito embora sempre os tenha julgado como um pai que igualmente a seus filhos julga -- ainda que em verdade deles nenhum tenha nascido de mim. Mas eram como se fossem. Ah, que lindeza este: "LVII - Ninguém será considerado culpado sem o trânsito em julgado da sentença penal condenatória"! E este então, que mimo: "X - São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente da sua violação"! E que belezura também: "LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal"!
Mas o país que eu conhecia parece estar se desvanecendo. A Justiça fechou o expediente e está a meio-pau. E o que antes era Direito, na democrática normalidade, agora é fé, convicção, seita. Ou a mais obscena moralidade. Eu sou um guardião de letras mortas.
Walfrido Vianna é professor, escritor, bacharel em Direito pela USP e revisor da editora do Senado Federal.
PS. Comentário primoroso de Edivaldo Dias de Oliveira, no GGN
jaz, a letra da lei
O que se procura agora é quem tenha a coragem de assumir o assassinato, pois resta claro que se trata de morte matada e não de morte morrida.
Acusamos a oposição de serem, se não o mandante, o executor do crime, mas ela logo tira o seu da reta.
Então passamos a acusar o Poder Midiático como mandante efetivo, mas este se esquiva dizendo-se apenas terem relatado o assassinato sem nele ter interferido.
O guarda, - poder judiciário - responsável pela segurança da jovem donzela é então apontado como quem a violentou em praça pública e depois a matou, mas este cinicamente não só não assume o estupro, como afirma que a jovem vive e passa muito bem ao contrário do que vemos e que nos saltam aos olhos. Diz ainda que a mesma está em pleno vigor de seus vinte e poucos anos e que nada nela foi violado, enquanto passeia sustentando-a diante de nossos olhos, como um Quincas Berro D'agua levado pelos amigos a passar depois de morto.
Quem é que vai pagar por isso?
Quem sabe nós, o povo, não sabendo mais a quem recorrer e a quem acusar pelo feito, venhamos a ser acusados pelos seus algozes de sermos os responsáveis pelos malfeitos a ela causados.
Faz sentido!
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