Roberto Requião - 04/11/2014
Ano passado, quando a Constituição de 1988 fez 25 anos, sessões especiais nos legislativos de todo o país, conferências, seminários, debates, programas de rádio e televisão, encartes em jornais e revistas, paradas e desfiles cívicos, documentários, filmes, missas solenes, Te Deum e até bailes homenagearam a ilustríssima aniversariante pelo jubileu de prata.
Uma festa de discursos e adjetivos altissonantes, rimbombantes.
Essas comemorações vieram-me fortemente à memória na terça-feira, dia 28, quando a Câmara dos Deputados sustou o decreto presidencial que previa a criação dos conselhos populares.
Houve quem visse no episódio o troco, a vingança do presidente da Câmara pela derrota nas eleições estaduais no Rio Grande do Norte. Pode ser que, como diz o povo, que a fome e a vontade de comer tenham se irmanado na decisão de derrubar o decreto. Pode ser.
A verdade é que o decreto já estava condenado. E a Câmara não fez mais que confirmar uma verdade: é permitido que se façam todos os elogios à Constituição Cidadã, desde que seu conteúdo verdadeiramente cidadão, democrático e popular não seja regulamentado.
É bom que a gente se lembre, e se lembre sempre: a tão versejada Constituição de 88 que, na minha opinião, não chega a ser a maravilha das maravilhas, mas representou um avanço, é resultado de determinada conjuntura, de um balanço de forças circunstancial.
Fazia pouco que o país emergira da ditadura e era natural que a pressão por avanços democráticos, pelo alargamento da participação popular, fosse absorvida pela Constituição. Além do que, some-se a mobilização das organizações populares e sindicais à época. E a composição do Congresso Constituinte, bem menos conservadora que Câmara e Senado de hoje.
Se a composição da Constituinte de 1988 fosse a do Congresso atual, temos todas as razões para duvidar que, por exemplo, o Sistema Único de Saúde fosse aprovado . E os títulos VII, Da Ordem Econômica e Financeira; e o Capítulo VIII, Da Ordem Social, certamente teriam conteúdos e redações absolutamente diferentes.
Ora, assim sendo, toda a regulamentação da Constituição que faça cócegas, por mais leves que sejam, nos conservadores parlamentares, nos conservadores mediáticos, nos conservadores religiosos reproduzirá a forte resistência que vimos no dia 28 de novembro.
É ocioso, é perda de tempo argumentar que alguns conselhos a que se refere o decreto que institui a Política Nacional de Participação Social e o Sistema Nacional de Participação Social já vigoram, já existem. Por exemplo, o Conselho de Comunicação Social.
É bem verdade que este Conselho levou um bom tempo para ser instalado. Regulamentado em de dezembro de 1991, só foi instalado onze anos depois, em 2002. Funcionou por quatro anos e ficou inativo até julho de 2012, quando foi reinstalado. Aliás, ao que parece, a ressurreição apenas se deu porque sua composição favorece claramente a representação empresarial, a imprensa-empresa.
De todo modo, o Conselho de Comunicação Social é prova de que os conselhos, mesmo que de forma tímida e, às vezes, desvirtuada, já fazem parte da vida brasileira. Na esteira da criação do Conselho de Comunicação Social foram criados os Conselhos estaduais do Amazonas, Pará, Alagoas, Bahia, Paraíba, Goiás, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Distrito Federal.
Para quem não sabe, o Conselho de Comunicação Social reúne-se nas dependências desta Casa toda primeira segunda-feira do mês, é presidido pelo cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Orani Tempesta e tem como vice ex-secretário de Comunicação do Senado, o nosso amigo Fernando César Mesquita.
E pelo que sabemos, a existência deste Conselho não abalou, não subverteu, não “venezualizou”, não “boliviarianizou” nossa pátria amada.
Na verdade, a criação dos conselhos de participação popular antecede, em décadas, a Constituição de 88. O primeiro dos conselhos a ser criado, o Conselho de Educação, foi instalado em 1936, portanto, há 78 anos. E nem o Estado Novo de 1937 e o golpe militar de 1964 suprimiram o Conselho de Educação.
Registre-se que até mesmo os militares criaram conselhos aos moldes do decreto da presidente Dilma, por exemplo, o Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador, o FAT, instalado em 1966.
Evidentemente, a participação nesses conselhos, durante o Estado Novo e a ditadura de 64, era selecionada e vigiada.
Pergunto aos senhores deputados que derrubaram o decreto 8.243 e aos senadores que prometem fazê-lo o mesmo nesta Casa se também vão cancelar o Conselho de Educação e o Conselho do FAT.
Mais ainda, pergunto o que vão fazer fulminar os 5.553 Conselhos de Saúde existentes no país.
As senhoras e os senhores senadores sabiam que apenas 17 dos 5.570 municípios brasileiros não têm Conselhos de Saúde? E que existem 3.784 Conselhos de Meio Ambiente?
E que há mais de cinco mil Conselhos de Educação?
Ora, revogue-se de vez a tão incensada Constituição Cidadã; cancele-se o princípio da Democracia Participativa; dê-se nova redação ao artigo 14 da Constituição que diz: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos e, nos termos da lei, mediante plebiscito, referendo, iniciativa popular”.
Chega de hipocrisia, chega de cinismo, chega de impostura.
O que incomoda e provoca urticária na velha e na nova direita brasileira, o que deixa a grande mídia empresarial com comichões autoritários são as pequenas, as modestíssimas brechas da Constituição de 88 à participação popular.
A possibilidade de conjugação da democracia representativa com mecanismos de participação popular, tornando viável a democracia direta, é isso que está por trás da reação furiosa dos conservadores ao decreto presidencial. É contra isso, é contra essa conjugação que se insurgem a velha e a nova direita.
Houve tempo em que Norberto Bobbio era o autor preferido dos que se opunham a uma leitura marxista ou gramsciana da política. Os nossos liberais adotaram-no como profeta. Pois bem, é a Bobbio que recorro para recuperar um dos pilares de seu pensamento: quanto maior a soberania popular, mais verdadeira, mais efetiva a democracia, diz ele.
Citei Bobbio, mas não é preciso ir muito longe deste plenário para recolher outros ensinamentos sobre a soberania popular.
Cito, então, Pedro Simon.
Tempos atrás, enquanto discursava, Simon foi interrompido para que a mesa anunciasse a presença nas galerias de estudantes universitários goianos. Simon fez um parênteses em sua fala e dirigiu-se aos estudantes: “Meus jovens, eu os saúdo mas os advirto: não esperem nada daqui, não esperem nada desta Casa. Se vocês quiserem mudar alguma coisa, vão às ruas. São as ruas que mudarão este país”.
Cito José Sarney.
Em uma fala sobre a democracia e seus tantos percalços, Sarney alertou para os limites cada vez mais estreitos da democracia representativa e mesmo o esgotamento dessa forma de representação.
Sarney aconselhou que abríssemos os olhos para que não fôssemos levados de cambulhada pela história.
Cito Walter Pinheiro.
Semana passada, o senador baiano lembrou uma frase de Ulysses Guimarães, advertindo os que lamentavam a piora da qualidade do legislativo. Dizia Ulysses: “Se você acha esta legislatura ruim, espera a próxima, e a próxima, e a próxima…..”
Bobbio, Simon, Sarney, Ulysses. A variação sobre um mesmo tema: a degradação da democracia representativa e a necessidade da democracia se reinventar, alargar-se, abrir-se.
Em sã consciência, nós podemos dizer que representamos os brasileiros que foram aos milhões às ruas nas jornadas de junho de 2013? Concretamente, de que forma as manifestações repercutiram nesta
Casa? Quê consequências práticas? Que projetos de lei, que iniciativas do Senado e da Câmara atenderam as ditas vozes das ruas?
Casa? Quê consequências práticas? Que projetos de lei, que iniciativas do Senado e da Câmara atenderam as ditas vozes das ruas?
A tal “pauta positiva” que aqui votamos, perdoem-me as senhores e os senhores, não passou de uma corrida atrás do prejuízo. Modesta corrida, diga-se.
Querem um exemplo?
Qual foi o deflagrador das manifestações de 2013? O preço e a qualidade do transporte coletivo.
E o que fizemos para melhorar esse serviço público reconhecidamente ruim, caro e que ofende, diariamente, a cada minuto, a dignidade de vida de dezenas de milhões de brasileiros?
Nada.
Nada fizemos e continuamos a nada fazer.
Senhoras e senhores senadores.
Na reação aos conselhos vejo a mesma resistência que encontrei ao propor a regulamentação do Direito de Resposta. A mesma resistência à equiparação dos trabalhadores domésticos aos demais trabalhadores. A mesma resistência à tipificação e punição do trabalho escravo.
Uma coisa é o conservadorismo em relação às instituições políticas, aos pressupostos econômicos, aos usos e costumes, ao comportamento. Outra coisa é a guerra contra os direitos dos trabalhadores, a negação aos brasileiros da garantia constitucional de participar, opinar, decidir, de existir como cidadãos titulares de direitos.
Com o diz a professora de direito constitucional Denise Auad: “O Estado brasileiro adotou, em seu texto constitucional, a democracia representativa conjugada a mecanismos de participação popular; ou seja: nossa democracia dever ser exercida, conjuntamente, por representantes livremente eleitos pelo povo e, na medida do possível, diretamente pelos cidadãos”.
Foi para dar consequência prática a esse pressuposto que a Constituição de 1988, entre outros meios da democracia direta, previu os conselhos. No entanto, em nenhum momento, a Constituição impõe a formação dos conselhos e nem dá a eles caráter deliberativo. Logo, não é honesto o que parcelas de oponentes dos conselhos populares estão fazendo ao atribuir aos conselhos populares prerrogativas que são próprias do Legislativo.
Ora, onde a usurpação de poderes? Onde o golpe contra a democracia? Onde a mudança de regime por decreto com o alucinou o “Estadão”?
A verdade é que a nossa elite tem um horror pânico da participação popular.
E a cada passo fica mais incomodada com a evidenciação do nosso povo que, nos últimos anos, tornou-se visível nos aeroportos, nos shoppings, nos restaurantes, nos cinemas, nas universidades.
Se a visibilidade do povo brasileiro já é desconfortável para essa gente, imagine o povo opinando, sugerindo, exigindo.
E nossa gloriosíssima e nunca suficientemente gabada e celebrada mídia, mais uma vez, está na liderança do atraso, gritando pomposos e adiposos editoriais contra o “bolivarismo”, o “chavismo”.
Trata-se de um movimento preventivo. Depois de um engajamento ensandecido na campanha eleitoral, buscando de todas as formas influir no resultado da votação, as sete famílias que monopolizam a comunicação brasileira parecem temer que volte ao debate a regulação da mídia.
Os monopolistas da mídia não querem conselhos populares cobrando o fim da propriedade cruzada dos meios de comunicação, como é regra em países dominados pelo “bolivarismo” como os Estados Unidos e a Inglaterra. …..Não querem o direito de resposta. Não querem o contraditório. Não querem a democratização das informações.
Os monopolistas dos meios de comunicação, a imprensa-empresa têm medo, terror pânico, que a democratização das instituições, que a democracia participativa, que a radicalização da democracia ilumine o canto escuro da manipulação de opinião.
Quem tem medo do povo?
Ah, sim! Uma breve e reveladora estatística: dos 1.057 deputados estaduais eleitos em outubro último, apenas 153 nunca exerceram mandato eletivo.
Não me parece que seja muito complicado interpretar esse número.
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