388 anos depois - O ‘Mercado de Notícias’ no século 21
Por Luciano Martins Costa - Observatório da Imprensa - 11/08/2014Assistir ao filme O Mercado de Notícias, do diretor gaúcho Jorge Furtado, é uma maneira de analisar a reputação da imprensa junto à classe média tradicional das grandes cidades, ou seja, pode-se perceber o sentimento que a imprensa provoca em seu público mais característico pelas reações da plateia no cinema.
Classificado como documentário, o filme é quase um produto jornalístico, ao propor uma avaliação das práticas do jornalismo contemporâneo e oferecendo como referência a visão que se tinha da imprensa em seu nascimento, nas ruas de Londres no século 17.
Basicamente, o roteiro apresenta cenas da peça teatral “O Mercado de Notícias”, escrita pelo dramaturgo inglês Benjamin Jonson e encenada pela primeira vez em 1626, como uma sátira ao surgimento dos folhetins semanais que traziam notícias impressas, de forma organizada e periódica. Intercaladas a cenas da peça, produzidas exclusivamente para o filme, Jorge Furtado apresenta entrevistas com jornalistas brasileiros que ele considera representativos da melhor imprensa nacional.
Da mesma forma em que é apresentado na obra de Jonson, o jornalismo ainda é visto hoje como um negócio que busca o lucro sob o escudo de uma justificativa moral fundada no interesse coletivo. “Pecúnia”, personagem-símbolo do lucro na obra do dramaturgo inglês, sobrevive na imprensa contemporânea como o contraponto de uma visão ideal do jornalismo.
Os profissionais entrevistados, de modo geral, buscam elaboradas formas de interpretação para sustentar a ideia de que o jornalismo ainda é uma atividade nobre, apesar de seus muitos defeitos. Como não poderia deixar de ser, perpassa quase todas as entrevistas a questão do partidarismo exacerbado que caracteriza a mídia tradicional no Brasil.
Repórteres, editores e colunistas aparecem para dizer que atuam como mediadores de interesses diversos, mas alguns exemplos coletados pela produção revelam, como pano de fundo, que vale tudo no propósito de demonizar um dos lados do confronto político-ideológico que se instalou no país no último quarto de século.
O “Picasso” do INSS
Um dos momentos mais emblemáticos do filme relata uma das mais bizarras “barrigadas” da imprensa nacional, que começou na Folha de S.Paulo no dia 7 de março de 2004, foi reproduzida nos dias seguintes pelos outros meios de comunicação e nunca esclarecida: o caso do “Picasso” do INSS.
Naquela data, um domingo, o jornal paulista publicou na primeira página, sob o título “Decoração burocrata” (ver aqui o texto publicado no interior do jornal), uma reportagem informando que um precioso desenho do pintor Pablo Picasso podia ser visto sob as luzes fluorescentes de uma repartição do instituto de previdência social. Na primeira página daFolha, a foto principal mostrava, perto da suposta obra de Picasso, um retrato do então presidente da República, o ex-sindicalista Lula da Silva.
O teor da edição induzia o leitor a acreditar que o governo do ex-líder metalúrgico não sabia reconhecer o valor de uma obra de arte, além de tratar com descaso o patrimônio público. Em meio às cartas de leitores que reforçavam o preconceito contra o então presidente, um e-mail do próprio Jorge Furtado ao então ombudsman da Folha alertava para a possibilidade de se tratar de uma mera cópia, dessas que se compra em lojinha de museu por dez dólares.
Mesmo alertados para o erro grosseiro, que a essa altura já era reproduzido como verdade pela imprensa internacional, os jornais brasileiros mantiveram o engodo. Mais de um ano depois, em 29 de dezembro de 2005, um incêndio na sede do INSS em Brasília trazia o fac-símile de volta ao noticiário: os jornais anotaram que a obra havia sido resgatada das chamas, intacta. Na Folha, já é uma “obra atribuída a Picasso” (ver aqui); porém, mais uma vez alertados por leitores atentos, os jornais seguem sustentando a bobagem, e surge a teoria de que o quadro teria sido dado ao INSS em pagamento de dívida.
Esse episódio provoca na plateia do filme manifestações semelhantes às que surgem com outras histórias, como o caso da Escola Base, e permitem observar como o público enxerga a imprensa nacional. Declarações de jornalistas tentando justificar erros como esses provocam muxoxos dos espectadores.
A comparação com o jornalismo precário dos primeiros anos da imprensa é inevitável: estamos na Inglaterra do século 17.
Veja também
O Mercado de Notícias, ato 1 [vídeo]
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por Jorge Furtado 19/01/2006 - 14:00
Nenhuma das matérias apontou para a obviedade da cópia, nenhum repórter teve a singela idéia de medir, com uma régua, o Picasso do INSS. Todos, sem exceções, fizeram ironias sobre o descalabro de uma obra de grande valor estar exposta numa repartição pública, muitos reclamaram das condições inapropriadas para a conservação da valiosa obra de arte, muitos fizeram críticas ao despreparo do governo Lula para lidar com a cultura e a arte.
Cansado do assunto e de esperar que alguém se habilite, resolvi fazer jornalismo eu mesmo, aqui no Não. Os leitores da Folha de São Paulo, do Estadão, do Correio Braziliense, da Época, da Terra e do Uol continuarão desinformados. Os leitores do Não, não.
O quadro da esquerda é o original e o da direita é a cópia. O original é um óleo sobre tela, colorido, de 99,1 x 80 cm e está no Museu Metropolitan, em Nova York. A cópia, sobre papel, é propriedade do INSS e está em Brasília. Não sei exatamente suas medidas, mas pelas fotos ele não tem mais que 70 centímetros de altura. A chance da ilustração da direita não ser uma cópia da ilustração da esquerda é zero. A chance da ilustração da direita ser de autoria de Picasso é igualmente zero.
A primeira vez que ouvi falar do Picasso do INSS foi em reportagem da Folha de São Paulo, em sua edição de domingo, 7 de março de 2004. Era uma matéria grande, na primeira página, com uma grande foto. A matéria continuava, com outra grande foto, na última página do primeiro caderno. Olhei a foto e reconheci o quadro. Pesquisei rapidamente em um livro e na internet e não tive dúvida alguma de que se tratava de uma reprodução.
Escrevi ao ombudsman da Folha, Marcelo Beraba, no mesmo dia.
Reproduzo aqui o meu e-mail:
Descoberta histórica ou barriga histórica?"
Descoberta histórica ou barriga histórica?"
artigo completo aqui:
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