Cynara Menezes - CartaCapital - 15/03/2014
A minha geração é a mais inocente das vítimas do golpe. Viemos ao mundo sob uma ditadura. Os generais já estavam lá. E não sabíamos de nada. Apenas marchávamos
Sabe aquela criança acenando com a bandeira do Brasil de cartolina verde e amarela, diante do pelotão que passa num desfile militar? Aquela, marchando de chapeuzinho de soldado, em fila, junto com os coleguinhas da escola no 7 de setembro? De uniforme branco e azul impecável, Vulcabrás nos pés brilhando, sorrindo sob um sol inclemente? Sou eu.
A minha geração, meninos e meninas do interior do Brasil nascidos no final da década de 1960 e começo dos 1970, é a mais inocente de todas as vítimas do golpe. Viemos ao mundo sob uma ditadura militar. Quando chegamos aqui, os generais já estavam lá. E não sabíamos de nada do que estava acontecendo. Apenas marchávamos.
Marchei todos os anos da minha infância, do pré-primário à 8a. série. Entre os ensaios, que começavam em julho, e o dia 7, acho que marchei o suficiente para ir a pé do Rio Grande do Sul até Rondônia. Na véspera da grande data, minha mãe passava a “farda” (sintomático: chamávamos o uniforme escolar de “farda” no interior da Bahia) e eu engraxava meus sapatos com Nugget e os escovava até deixá-los com aparência de novos. Ficava orgulhosíssima do feito.
Não sabíamos por que marchávamos, só que era “pelo Brasil”. Cantávamos o hino e hasteávamos a bandeira diariamente. Nas aulas de Educação Moral e Cívica, nos ensinavam que era crime não respeitar o hino e a bandeira. A propaganda era tanta que até hoje tenho na memória a musiquinha do sesquicentenário da Independência, que aconteceu quando eu tinha 5 anos! “Sesquicentenário da Independência/ Potência de amor e paz/ Esse Brasil faz coisas/ Que ninguém imagina que faz.” Também sei de cor o hino brasileiro, o da Independência, o da Bandeira, o do Soldado e até o da Marinha. Éramos treinados para ser soldadinhos da ditadura, num eterno tiro-de-guerra, sem fuzis.
Um ano marchei fantasiada de intelectual, com beca e capelo, segurando um dicionário; no outro toquei surdo na banda; em outro ainda, fui vestida como integrante do coral da escola. Não me lembro de jamais ter reclamado de nada, só achava ruim que a ordem na fila fosse do mais velho para o mais novo, porque eu sempre ficava na rabeira. A coisa mais antidemocrática do meu mundinho era a escolha da baliza: por que só ela podia ir na frente de todos no desfile?
Meu pai era gerente de banco, e em 1973 comprou seu primeiro carro, um Fusca. Quando ele colocava os três filhos no banco de trás e viajamos de férias, éramos o próprio retrato do “milagre brasileiro”. Não se falava de política em casa. A única lembrança relacionada à tortura que tenho era dele sussurrando assim: “Não se pode criticar o governo. Uma moça de Ipiaú (a cidade dos meus avós, onde nasci) fez isso e arrancaram as unhas dela”.
Obviamente seguíamos o conselho à risca, e apenas brincávamos de pega-pega, esconde-esconde e de bicicleta, alheios a todo o horror que estava acontecendo. Na TV, cantávamos junto com os “Brasilianos”, personagens que a ditadura criou para seduzir as crianças, “Este é um país que vai pra frente, uou, uou, uou, uou, uou...” Sabíamos escrever direitinho o nome difícil do presidente Emílio Garrastazu Médici e até o de sua mulher, Scila. Depois, também o de Ernesto Geisel e sua mulher, Lucy. E marchávamos, marchávamos, marchávamos.
A minha geração é a mais inocente das vítimas do golpe. Viemos ao mundo sob uma ditadura. Os generais já estavam lá. E não sabíamos de nada. Apenas marchávamos
Sabe aquela criança acenando com a bandeira do Brasil de cartolina verde e amarela, diante do pelotão que passa num desfile militar? Aquela, marchando de chapeuzinho de soldado, em fila, junto com os coleguinhas da escola no 7 de setembro? De uniforme branco e azul impecável, Vulcabrás nos pés brilhando, sorrindo sob um sol inclemente? Sou eu.
A minha geração, meninos e meninas do interior do Brasil nascidos no final da década de 1960 e começo dos 1970, é a mais inocente de todas as vítimas do golpe. Viemos ao mundo sob uma ditadura militar. Quando chegamos aqui, os generais já estavam lá. E não sabíamos de nada do que estava acontecendo. Apenas marchávamos.
Imagem: ALPESTRE/RS - 1976 |
Marchei todos os anos da minha infância, do pré-primário à 8a. série. Entre os ensaios, que começavam em julho, e o dia 7, acho que marchei o suficiente para ir a pé do Rio Grande do Sul até Rondônia. Na véspera da grande data, minha mãe passava a “farda” (sintomático: chamávamos o uniforme escolar de “farda” no interior da Bahia) e eu engraxava meus sapatos com Nugget e os escovava até deixá-los com aparência de novos. Ficava orgulhosíssima do feito.
Não sabíamos por que marchávamos, só que era “pelo Brasil”. Cantávamos o hino e hasteávamos a bandeira diariamente. Nas aulas de Educação Moral e Cívica, nos ensinavam que era crime não respeitar o hino e a bandeira. A propaganda era tanta que até hoje tenho na memória a musiquinha do sesquicentenário da Independência, que aconteceu quando eu tinha 5 anos! “Sesquicentenário da Independência/ Potência de amor e paz/ Esse Brasil faz coisas/ Que ninguém imagina que faz.” Também sei de cor o hino brasileiro, o da Independência, o da Bandeira, o do Soldado e até o da Marinha. Éramos treinados para ser soldadinhos da ditadura, num eterno tiro-de-guerra, sem fuzis.
Um ano marchei fantasiada de intelectual, com beca e capelo, segurando um dicionário; no outro toquei surdo na banda; em outro ainda, fui vestida como integrante do coral da escola. Não me lembro de jamais ter reclamado de nada, só achava ruim que a ordem na fila fosse do mais velho para o mais novo, porque eu sempre ficava na rabeira. A coisa mais antidemocrática do meu mundinho era a escolha da baliza: por que só ela podia ir na frente de todos no desfile?
Meu pai era gerente de banco, e em 1973 comprou seu primeiro carro, um Fusca. Quando ele colocava os três filhos no banco de trás e viajamos de férias, éramos o próprio retrato do “milagre brasileiro”. Não se falava de política em casa. A única lembrança relacionada à tortura que tenho era dele sussurrando assim: “Não se pode criticar o governo. Uma moça de Ipiaú (a cidade dos meus avós, onde nasci) fez isso e arrancaram as unhas dela”.
Obviamente seguíamos o conselho à risca, e apenas brincávamos de pega-pega, esconde-esconde e de bicicleta, alheios a todo o horror que estava acontecendo. Na TV, cantávamos junto com os “Brasilianos”, personagens que a ditadura criou para seduzir as crianças, “Este é um país que vai pra frente, uou, uou, uou, uou, uou...” Sabíamos escrever direitinho o nome difícil do presidente Emílio Garrastazu Médici e até o de sua mulher, Scila. Depois, também o de Ernesto Geisel e sua mulher, Lucy. E marchávamos, marchávamos, marchávamos.
Então, aos 14 anos, quando entrei no segundo grau, veio o choque em forma de livro: “História da Sociedade Brasileira”, de Francisco Alencar, Lucia Carpi e Marcus Venicio Ribeiro –só recentemente descobri que o primeiro é Chico Alencar, deputado federal pelo PSOL do Rio. Este livro foi fundamental para minha formação de esquerda a partir da decepção que me causou ler que os “heróis” que a ditadura impingiu à minha geração nada tinham de heróis: Princesa Isabel, Dom Pedro I, Dom Pedro II. E que a “revolução de 31 de março” foi, na verdade, um golpe.
A maior das decepções: pagamos uma indenização a Portugal pelos “prejuízos” causados pela Independência! Aquilo me deixou estupefata e furiosa. Todos aqueles anos marchando por algo que não era verdadeiro... Era como se me dissessem subitamente que minha infância foi uma farsa. O que fizeram comigo, conosco, com aquelas crianças? Não fomos torturados nem assassinados, mas fomos vítimas, também. Lavagem cerebral também é uma violência.
Não sinto raiva por todos aqueles anos em que marchei. Foram anos felizes e a convivência com os colegas foi bacana, o fato de nos organizarmos para fazer algo de que iríamos nos orgulhar coletivamente, ainda que fosse uma pantomima de desfile militar. O que deixa meu coração partido, aos 50 anos do golpe, é nunca ter tido, até os anos 1980, nem um professor sequer que se rebelasse contra aquele esquema, que sugerisse ser aquilo tudo uma encenação, que estavam nos usando como atores-mirins de um grande cenário de “felicidade” enquanto, nos porões, penduravam seres humanos no pau-de-arara e lhes davam choques elétricos. Pra frente, Brasil.
*Cynara Menezes é repórter especial de CartaCapital. Este texto faz parte da série de artigos do especial Ecos da Ditadura, que lembra os 50 anos do golpe cívico-militar
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